Ele ficava escondido em um quarto escuro, nunca abria a porta, só uma fresta e Rebeca colocava a comida, um pouco de água e saía morrendo de medo.
As pessoas comentavam: “Como pode aquela moça ter tanta coragem?” “Ninguém quer chegar perto!”
Uma força enorme parecia destruir tudo, quando rugia todo mundo ficava quieto, pensando: “Rebeca está atrasada, não foi alimentar aquela Fera hoje?”
Mas tudo tem um por que, nada chegou a este estágio sem antes uma história.
Tempos atrás, Marcos trabalhava de peão numa fazenda. Fazia a lida que dez peões não conseguiam, acordava cedo, logo já saía para os afazeres do campo, antes um café preto e um pedaço de pão.
A propriedade era grande, tinha quadras e mais quadras de campos. O patrão, Sr Rafael, era casado com Catarina e tiveram sua única filha, Mercedes. Moça prendada, sorriso estampado no rosto, gostava de sair com seu cavalo para dar umas voltas no pasto. Não era de muita conversa tímida, só cumprimentava os peões e seguia seu rumo. Além de Marcos, tinha Eusébio e Mateus. Eusébio era o mais antigo, tinha visto Mercedes nascer. Quando Dona Catarina teve aquela guria, sua esposa Maria ajudou no parto. Foi uma churrascada só naquele final de semana, a casa se encheu de gente e Seu Rafael mandou matar um novilho e servir bem todos os convidados. Tempos bons foram estes. Aquela fazenda era iluminada. Mas, o que aconteceu, por que tudo isso? Qual a razão de tanta desgraça naquele local?
Numa tarde de sábado, Mercedes sai para cavalgar, já era a tardinha e nada da guria voltar para casa. O pai e a mãe se preocupam. Marcos, peão prestativo, diz ao patrão: — Vou atrás da guria se o Senhor me permitir?
O pai, preocupado: — Eu vou junto! Reuni o resto dos peões, ela deve ter se perdido nestes campos.
Só tinha algo que o pai não sabia: Marcos estava interessado em Mercedes. Então, sua preocupação com a guria era além de tudo.
E saíram todos em comitiva naqueles campos. A varredura era grande, a mãe da menina Catarina ligou para os vizinhos e pediu ajuda. Marcos estava desesperado, mais enlouquecido que o pai de Mercedes.
Quando avistaram somente o cavalo galopando solto, disseram entre si: — Ela deve ter caído em algum lugar. Disseram para o bicho: — Mostra onde tu largaste a guria?
O cavalo era meio xucro, só obedecia a Mercedes, presente de seus 15 anos. Ela, com 20 anos, era seu melhor amigo.
Quando ele se dirige ao despenhadeiro, os corações de todos parecem pressentir algo errado. Olhavam e nada de Mercedes. Nisso, um pequeno grito se escuta: — Socorro estou aqui!
Ela estava presa com o pé numa fenda, diante do despenhadeiro.
E agora, o que fazer? Quem vai descer para resgatar a guria, o pai não conseguia, os outros peões nada podiam, nisso Marcos, mais que prontamente: — Eu vou. Amarrou uma corda na cintura, os outros seguravam e desceram. Por razões do destino, quando chegou a Mercedes, muito ferida, quase sem forças e pegou na sua mão, a guria escorregou de vez e infelizmente foi penhasco abaixo. Aquilo foi uma tragédia. Ninguém mais se recuperou direito naquela casa, o que era luz se tornou trevas.
Seis meses após isso, Dona Catarina caiu de cama e dali não saiu mais. Marcos pediu as contas e foi embora, sem alívio para sua dor.
Passados tempos, achou um quarto, recebia uma ajuda de parentes com pena de sua situação. Mas só quem podia se aproximar para trazer alimento era Rebeca, uma vizinha que tinha pena de tudo que tinha acontecido na vida dele. O que fazia ele receber o alimento que ela trazia: seus olhos lembravam os de Mercedes. Depois, ele se recolhia e ia sofrer sua dor.
Dois anos após aquela tragédia, Senhor Rafael olha seus campos, sem Catarina e Mercedes. O que fazer com aquele monte de terras? Porque tanto e nada de vida ao seu redor. Olha para Eusébio e diz: — Se despede de tudo e fecha. É a última vez que voltamos aqui.
Vai à cidade e dá uma ordem: — Acha onde está o Marcos. Quero falar com aquele guri!
— Mas dizem que ele se transformou numa fera! Ele responde: — Não interessa, me leva lá.
Dias após, vai ao quarto escuro: — Guri, vim falar contigo, sou teu patrão Rafael, pai da Mercedes.
Marcos achou que estava tendo um delírio, não queria sair. O patrão insiste:
— Guri, tu sai deste quarto é agora. Papearam por mais de três horas, ele sujo, sem fazer a barba, todo esfarrapado. E o patrão diz: — Não tenho ninguém para cuidar daqueles campos, tu sabes o que aconteceu. Quero que tu voltes e assuma para mim toda a administração. É hora de curar o que passou meu filho!
Cinco anos adiante: Marcos galopa naqueles campos, Rebeca assumiu a casa, tem dois miúdos correndo no pátio da propriedade. Chega à caminhoneta, Eusébio com Seu Rafael, os guris correm para abraçá-lo. Anoitece, o fogo aquece a casa principal, todos numa roda de chimarrão. A fera se amansou e os tempos de escuridão se dissiparam.