O diário de Betina

Colunistas Geral

Em tempos de escrita quase completamente digital, Betina preservava um costume que assumiu há cinco anos de forma efetiva, mas que já fazia parte de sua adolescência: ter o seu diário. Um caderno simples, sem chaves, apenas uma capa dura de cores neutras, mas com muitas páginas, já estava no seu quinto volume. Os outros arquivou em uma caixa acomodada em cima do seu roupeiro. Ali escrevia os momentos em que vivia seus maiores desejos, desafios que enfrentara ou estivesse enfrentando.
Não era uma escrita religiosa, nem obrigatória, tipo assim: todos os dias tenho que pautar algo no meu diário. Era quando tinha fome, sede, desejo incomensurável de expandir sua alma através das letras.
Aquilo fazia sair toneladas dos ombros de Betina. Na sua vida corrida e cheia de muitos compromissos, morava sozinha, num pequeno apartamento, afastado do centro da sua cidade. Ela não utilizava transporte público, até porque ali nem passava, acordava cedo e ia a pé ao trabalho, era atendente de uma loja no centro que vendia roupas, a algumas quadras dali.
Era a quarta de cinco irmãos: Bento, Alberto, Susana, Betina e a menor, Brenda. Diferente deles saíra de casa mais cedo, só os irmãos casaram e foram morar noutra cidade. Susana e Brenda ainda moravam com seus pais no interior. Betina alçou asas, foi trabalhar e estudar fora, tudo muito novo e diferente. Casualmente isso se aliou ao tempo que começou a ter desejo de fazer algo que tinha o costume na sua adolescência: ter diários de suas vivências. Quantas coisas, nem seus pais sabiam ou irmãos, e naquelas páginas até amarelas do tempo, estavam ali escritas. Os primeiros, quando adolescente, eram com chaves, agora, morando sozinha, não achava necessidade de tantas reservas.
Às vezes, o relato bastava em meia página, noutros, as questões eram tantas que extravasavam mais que duas até três. O que era visível era que aquela atividade fazia bem à alma de Betina.
Era seu aniversário e os pais foram lhe visitar com a irmã e disseram: – Vamos comprar um bolo e salgados e comemorar aí contigo. A Susana e a Brenda vão também, que estão com saudades de ti!
Dia corrido no trabalho, os pais e as manas chegavam ao meio da tarde, ela deixou as chaves reserva com o porteiro, para se acomodarem logo, já que eram mais de quatro horas desde o interior até a nova morada de Betina. Trânsito caótico, eles disseram que trariam algo, mas era feio se não tivesse nem um bolinho e mais algo para recebê-los. E assim chegou à padaria onde tomava café todos os dias. Escolheu tudo, deram três caixas, mais o bolo e as sacolas que carregava. Numa delas havia algo especial, seu diário atual, que havia levado ao serviço. Escorregou e nem se deu conta de ter perdido. Saiu dali correndo.
Mal deu tempo de colocar as chaves e tentar dar um jeito na sua bagunça e eles chegaram. Sua mãe era muito correta neste sentido, seu pai nem tanto. E, quando viu, eram risadas, conversas, reclamações, um pouco de sua família invadindo sua sala. Entre abraços, parabéns e uns presentes, os quitutes da mãe para incrementar a sua pequena festa, que entrou noite adentro. Foram dormir, passados uma da manhã, mas era sábado e podiam emendar o sono. Já que seu trabalho só voltaria de verdade na próxima segunda.
Nem lembrava o diário, dedicação total às visitas familiares. As gurias eram agitadas e queriam ir ao cinema, ao shopping, à mãe e o pai nos mercados e sempre aproveitavam a visita na casa da filha para suprir coisas que lá no interior eram mais difíceis.
Segunda passou terça, quarta, lá na quinta, deitada na sua cama, tenta achar na cabeceira o diário, registrar o que foi a semana passada, seu aniversário e rever a família e nada. Botou a casa abaixo e nem sinal do bendito. Lembrou com muito custo que havia levado para o emprego onde trabalhava e que colocou em uma das sacolas do dia do seu aniversário. Bingo! Perdeu-se em algum lugar pelo caminho.
Desiludida de que poderia reencontrá-lo, achar seu paradeiro, ter notícias de seus escritos mais íntimos, foi dormir desolada. E ainda repassando, se teria algo que pudesse comprometer de alguma forma, já que eram desabafos seus privados. Chegou um ponto em que o cansaço tomou conta e adormeceu, sem esperança alguma de reencontrar o mesmo.
Acordou, tomou café, lembrou cada passo do retorno para casa naquele dia. E disse para si: fui ao mercado, depois cheguei à farmácia e, por último, na padaria. Será?
E foi aos lugares, perguntando se não teria ficado um caderno com escritos em uma sacola. Nada, no mercado, nem na farmácia e nem na padaria. Quando saí da padaria, chegou Ivan, atendente daquele dia, e ela ainda insistiu: – Será que não ficou um caderno cheio de escritos por aqui? Na semana passada, comprei coisas para minha festa de e estava cheia de sacolas.

– Ah, a moça que escreve? Não me desculpe, eu li quase tudo, para achar quem era o dono ou dona daquilo ali. Aí descobri que era uma mulher. Só não dava para saber quem era, não tem identificação alguma! Mas, está comigo, acho que cheguei na melhor parte, não venci ainda tudo que está escrito! A senhora deveria escrever um livro, tem cada história lá! Ela, toda corada, mas aliviada de que poderia ter novamente seu diário em suas mãos, acertou quando podia pegá-lo novamente. E levar em segurança para sua casa.
Passado o tempo, Betina olha sua caixa com os diários, vai relendo cada uma de suas memórias ali registradas. Olha os tempos de lutas, os que se achavam sem saída, suas vitórias, os fracassos, as esperanças e sonhos. Seus desabafos e erros, seus acertos. E ficou pensando: “Talvez aquele rapaz tenha razão, vou reescrever isso em forma de um livro.
Assim como ele ficou feliz em ler isso, acho que será uma boa leitura de experiências de vida para outras pessoas.”
Nasce ali a alma de uma escritora! Ela não parou mais, agora não são só seus diários, são várias histórias que ela empilha na sua estante, com títulos de vários livros!

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