Aquilo significava liberdade para a alma de Anita. Acordar pontualmente às 6h da manhã, sendo o dia bom, lavava o rosto, escovava os dentes, já colocava sua calça e blusa confortável e claro seus tênis para aquela meia hora de corrida. Isso no mínimo três vezes por semana, tinha tempos que emendava seis dias, só dava folga no domingo.
Um hábito que adquiriu desde cedo. Sua tia Andréia era corredora e, no fundo, plantou essa semente na sobrinha, que achava aquilo o máximo. Quando podia, pedia para sua mãe ir olhar a tia correr ou acompanhar seus treinos.
Estavam programados três circuitos de corrida naquele ano. Então, bora treinar porque seriam provas importantes: uma de 5km, a segunda um pouco maior de 7 km e a principal no final do ano de 15km, que envolveria vários corredores.
O local preferido dela era uma estrada de chão batido, que tinha no total 4 km, em que era tranquilo e, ao mesmo tempo, tinha o desafio do terreno nada plano.
Um dia normal de treino naquele sábado, nada de extraordinário, fez a primeira etapa, se preparou para o retorno, cronometrava seu tempo, adorava ir e voltar escutando suas músicas prediletas, aquilo dava um fôlego maior para sentir menos o impacto. Já na metade do caminho de volta, só sente uma batida e logo fica desacordada. Mais tarde, num hospital de sua cidade, acorda com alguns arranhões nos braços e vê uma de suas pernas enfaixadas. Quando recuperou a memória, só se lembrava de alçar voo e cair, perdendo os sentidos.
Nisso, o médico que a atendera, chamado pela enfermeira responsável, atualizou seu estado de saúde, esclarecendo que ela havia quebrado a perna direita e ficaria um tempo imobilizada. Portanto, bom tempo sem corridas até sua pronta recuperação. Foi ainda falado que se tratou de um acidente, o moço que atropelou Anita ficou sem freio no carro e, o pouco que desviou, ainda não conseguiu e acabou colidindo com ela, que estava fazendo sua atividade física. Depois ela ficou sabendo que se tratava realmente disso, pelas testemunhas que viram, e ele prontamente prestara socorro e estava desesperado pelo que acontecera.
Anita mudou sua rotina de vida após o acidente, agora a prioridade era sua perna. Nas primeiras consultas, sempre foi alertado que sua maior paixão só estaria liberada quando estivesse cem por cento recuperada. Isso acabou deixando-a deprimida, não tinha mais aquela adrenalina e liberdade que sentia em seu peito, diante do que lhe fazia bem, que eram seus treinos, nem pelos circuitos ou pelas medalhas, gostava da atividade em si, todo o preparativo.
E foi aconselhado pelo seu médico que procurasse um psicólogo, porque infelizmente demoraria mais sua recuperação e teria que lidar com seu estado atual de saúde e limitações. Resistente, mas com os conselhos dos seus pais que a incentivaram também a buscar ajuda profissional, foi na primeira sessão, ainda de gesso, utilizando muletas, que descreveu o que estava vivendo, o quanto a corrida era importante e o fato de estar realmente triste por ficar este tempo sem poder fazer algo que sua alma adorava.
O psicólogo diligente não só escutava ela, fazia alguns questionamentos e dava também explicações. Sendo que uma das sessões foi marcante para Anita, em que ele falou:
- O problema não é tua perna quebrada, isso com o tempo, o médico, a fisioterapia, tudo voltará ao normal, nem é a corrida que tu dizes sentir muita falta. Creio que o problema seja outro.
E Anita ficou curiosa e o questionará, buscando uma resposta para seu dilema em se sentir limitada e triste por não conseguir ter mais, nem que fosse por um tempo, a liberdade de locomoção e de correr. E ele responderá: - Creio que tu saberás a resposta, quando olhar essa situação como tempo de aprendizado. É o que posso te responder no momento.
Aquilo mexeu com as emoções de Anita e ressignificar aquilo talvez fosse o impulso para a cura tanto do seu corpo, como dos sentimentos de impotência e limitação que a entristeciam naquele momento. Lembrou-se então de como poderia participar ainda dos circuitos de corrida, mesmo sem correr, uma forma de estar presente, torcer por amigos e talvez no ano que vem estar ali novamente correndo.
E se ofereceu para com seu drone, cobrir os eventos, mesmo que não fosse remunerada por isso, tirando fotos e fazendo algumas filmagens. E isso foi um gás a mais para a Anita, que repercutiu tanto nas suas sessões com o psicólogo, em que seus assuntos estavam focados agora mais na cobertura dos eventos em que estava envolvida, do que na recuperação da sua perna em si, que ficara um assunto não principal. Já na fisioterapia e no médico, sua mudança era visível.
E, no final das sessões do seu psicólogo, foi proposta uma autoavaliação sua de seu problema e levou uma carta, ainda não totalmente recuperada, mas já andando com certa normalidade, na qual relatava:
«Ainda não estou correndo, mas vendo meus amigos correrem, acabo tendo a mesma emoção. O tempo da perna quebrada mostrou que não sou invencível e que devo, embora fazendo uma atividade física, cuidar de mim e dos locais aos quais escolho para treinar. Estou ainda com cicatrizes na minha perna, sonho que estou correndo. Mas entendi que posso sobreviver, mesmo ainda com esta limitação, na esperança de logo correr por aí. Agradeço, no fundo, poder olhar esta situação de uma forma de entender que acidentes ocorrem o tempo todo, também a importância de dar valor à minha vida. E, dando tudo certo para mim, voltando 100% na corrida no tempo certo. Gratidão. Anita»
Hoje ela participa de alguns circuitos de corrida, mudou seu local de treino, respeita seus limites, foi muito difícil o recomeço, até pelo medo interno que ficou do acidente, então está mais prudente. Corre, mas sabendo que é algo que faz parte de sua vida e não tendo aquele total espaço. E, no fundo, aquilo mostrou que todos os processos que estava passando na sua vida eram aprendizados valiosos, para saber viver todos os tempos, até os que sentiu mais limitada, sem liberdade para correr!